Poesia: Dora ainda...



CIDADE FÍSICA


A cidade existe estrondosamente
Pisam sôbre o tambor das ruas
Passos de ritmos vários
Acordando as pausas verticais

Não há ouro entre a poeira
Nem recato no ruído
As ruas se negam aos transeuntes
E há afogados
Entre canais humanos

Já ruiu o abrigo das flôres
E já passou a vertiginosa estrêla
Levo perdas e danos
E tôdas as tristezas comuns
Em mim reunidas

Jogo o olhar em visões
E beijo as pedras
Cuidando despertá-las

Dor física do amor
Dor física da cidade imensa
A idéia crepuscular
Pernoita
Entre muralhas lisas



CONSULAR

Meu bem
Não há tempo
Para sonhar nossa ventura
Não levanto mais os olhos
Sôbre te amar existe um véu

Mr. Brown vem aí
Para falar
Para explicar
Ou reclamar

Meu bem
Os guindastes se agitam
Para embarcar a prole numerada
Da produção fabril
E o cargueiro
É como um berço sôbre o mar

E há carros a registrar
Licenças para renovar
Se o número do motor
Não fôr zero zero trinta e dois
Mr. Brown vai se zangar

Porque Buick não se compra
Em qualquer lugar
E as cifras são altas
E demoram a confirmar
Mr. Brown tem de esperar

E depois veja as terras
De Goías para povoar
E o nordeste e o sem-fim
E o Amazonas que não pára
De rolar
E o tatu que está na hora
De caçar

Ai meu bem
Que tempo para amar
Se o café está subindo
Está descendo
Com teto alto
Ou teto baixo
E Mr. Browm tem dinheiro
Para gastar

O avião em Idlewild
Vem atrasado
Transpirado
Trazendo mosquitos da Arábia

E em Brooklin
Sete tarados
Mataram o benfeitor
E onde está o jornal
Para cortar

E a notícia para mandar
Colar
As sirenas apitam
Para avisar
Que é hora de treinar
A fuga
Antiatômica
Pelos subterrâneos

As vitaminas rolam
Na seringas
Para dar sol às veias
E as pontes vão se abrindo
às portas do Queens Bulevar

E é longa a busca
Da mulher adúltera
Que fugiu do lar
E o marido marujo vai voltar

Meu bem o amor me escapa
Porque o navio apita
Na rua do Canal
Exigindo o cumprimento
Da tabela nove
Da tabela dez
E sem estampilha
No papel como zarpar?

E o mal-estar do amor
Do casal que mora
No número vinte-e-dois
Da rua nove dois
E tem apartamento à espera
No mil cento e trinta e dois
E a ordem não vem
E o dinheiro acabou
E só o amor ficou

Meu bem
No bar escuro
O banjo procura
A resposta do muro
Mas eu assino
Sôbre carimbo e tinta
O regulamento prescrito

Não o teu nome querido
Seria muito lirismo
Assino o meu nome
Oficial
Formal
Longitudinal

Teu nome eu escreveria
No vento em água
Na intimidade do muro
Eu subiria às altas tôrres
Para dizer teu nome ao tempo
à cotovia
Ou ao terral

Mas com a cabeça baixa
Eu esqueci de te amar
Passou o tempo
Passou o luar

E agora meu bem
Creia em mim
Se não te amei
É que tempo não houve
Até o fim.




VOU PINTAR BONECOS

Pinto bonecos grotescos
No muro branco de cal
Pinto bonecos magrinhos
E pinto bonecos gordos
Só para me vingr
Já que não posso falar

Arquibaldo
Meu irmão Arquibaldo
Traz o giz
Vem me ajudar

Vou pintar bonecos
Um com os braços erguidos declamando
Outro chorando com os braços caídos
Um de joelhos procurando
Outro deitado descansando

Muitos bonecos

Tenho que me vingar
Já que não posso falar

O rubicundo com os dentes de fora sorrindo
Outro barrigudo comendo
Um sentado na pedra pensando
Outro com a espinha curva concordando

Muitos bonecos

Um britando pedra transpirando
Outro com as mãos cheias de sementes plantando
Outro com as moedas nos bolsos contando
E outro parado a esperar

Muitos bonecos

O prestidigitador eficiente enganando
Um boneco de óculos filosofando
Outro de pernas cruzadas fumando
E um magricela a vagar

Muitos bonecos

Arquibaldo
Arquibaldo meu irmão
Traz o giz
Vem me ajudar

Vou pintar fileiras de bonecos
Pelo muro branco
E fuzilar tudo ao romper
Da madrugada
Fuzilar tudo
Com meu irmão Arquibaldo
Só para me vingar
E não falar

Arquibaldo
Quando o muro ficar todo  branco
Sem nenhum boneco
Para o profanar
Quem vai nos matar?

Arquibaldo não trouxe o giz
Arquibaldo não ajudou
Arquibaldo sabia que eu estava cansada
E que eu não servia para me vingar

Arquibaldo deixou que o muro branco
Ficasse invadido de luar]Sem sombra de mácula
Tranquilo
Para me sossegar

Arquibaldo
Meu irmão Arquibaldo
Esquece o giz
Deixa o luar....