Retornando...

sábado, 1 de dezembro de 2012



Olá meus amigos!Trouxe para vocês este texto do mineiro Paulo Mendes Campos, extraído do livro Homenzinho na Ventania. Aproveitem e se deleitem com esse extraordinário escritor.



FOLCLORE DE DEUS

Para Deus, tudo dos homens é o mesmo folclore: o cego Deraldo e Goethe, o inventor da roda e Einstein, Vitalino, de Caruaru, e Rodin, a Saudade de Ouro Prêto e a Heróica;
Lampião e Napoleão são rimas aos ouvidos de Deus.
O sabugo de milho vira foguete nas mãos do menino, mas o foguete vira sabugo nas mãos transespaciais de Deus.
Para Deus, tudo dos homens é a mesma simplicidade: a bola é de Paulo; Paulo corre atrás da bola; Eva Curie viu a ave; vovô Freud viu o ôvo.
Deus acha graça em nossos elementos.
Há doenças dispendiosas que se tratam anos a fio em hospitais suntuosos; há homens fortes que (só) carregam nos estádios o secreto câncer de viver; mas para Deus todas as doenças são dores de cabeça.
Para Deus, todos os homens são pobres: mendigos das esquinas de Wall Street, indigentes dos cartéis do aço, flagelados dos subterrâneos petrolíferos; mas Deus prefere os pobres sinceros, e os faz invisíveis.
Deus é o único hipnotizador: crescei e multiplicai-vos, e os homens inventam passagens sobre e sob o rio, semânticas, paixões assassinas; mas, a uma certa hora, ele nos convence de que estamos mortos;
de mãos cruzadas e olhos estarrecidos, a gente acorda.
Deus é a moeda clandestina em um país estrangeiro: pobres de nós se confundimos a sua efígie de ouro de lei com o perfil niquelado de  César.
Para Deus, todos nós somos loucos metidos em camisas de onze varas: sobre os ombros do paciente ele coteja os graus da certeza neurótica do analista.
O que seguras em tua mão é aquilo que te prende: o que possuis é aquilo que te priva; mas Deus diz: bebe a água sem bebê-la, anda por toda parte sem ir a parte alguma.
Na semente, Deus é a árvore; na árvore, Deus é a semente.
Onde a palavra começa, a palavra acaba, e aí está Deus.
Para Deus, todos os homens levam nos bolsos objetos escondidos: selos antigos, uma esfera de aço, um anzol enferrujado, um canivete sem folha; por isso é preciso, de pena de nós mesmos, fazer força
para não chorar. Pois todo menino enterra seu tesouro.
Deus é a luz, e assim a energia é a matéria multiplicada pelo quadrado da velocidade de Deus.
Deus dá nozes a quem tem dentes: ao funâmbulo Deus estende a corda; o sofrimento, Deus dá a quem tem alma; a alegria, essa Deus a reservou para quem não tem nada.
Deus é o grande madrugador: ele estava de pé entre folhagens portentosas na úmida aurora do mundo; e ele andava em ti enquanto dormias.
Mas Deus é também o grande boêmio: ele passou por tua noite quando bebias teu penúltimo copo de vinho; talvez não o viste, mas todos os teus sentidos se alertaram, e bebeste um gole inquieto e enxugaste teus lábios com o dorso da mão e sentiste saudade de tua casa.
Deus é a chave de ouro do poema; mas as outras 13 chaves pendem de teu chaveiro; e os metais de tuas chaves abrem aposentos de frustração, onde não te encontras.
Deus é o guardião, a zaga, o meio apoiador, o ponta-de-lança e o entendimento misterioso entre as linhas; o ferrôlho não prevalecerá contra ele; por isso as multidões vibram com seu virtuosismo.
Para ele, o homem primitivo será o último homem, e o primeiro homem foi o único sábio. Sendo o centro do círculo, todos os pontos que formam o tempo são equidistantes de Deus.






O Grande Caminho do Branco

domingo, 25 de dezembro de 2011

NO MEIO DO CAMINHO
Sabendo minha fragilidade
e a tua
jamais hei de dizer palavras
consagradas: para sempre

Porque a flor pode
de repente perturbar
o silêncio que se fizera
entre nós
E esquecermos de tudo
o que ficou em mim
o que ficou em ti
depois da ausência

Então talvez fôsse possível
caminhar de noite
sem lanterna
em demanda um do outro
para saber o encontro
possível
Eu sairia de mim
sem pressa
Tu partirias de ti
com certa esperança
E quem sabe nos encontraríamos
na hora da mudança
com o valor da noite pesando
sôbre nós como um alpendre
E ficaríamos incertos
buscando rumos
Rumos
Rumos
que nos trouxessem
novamente

Quem sabe de repente
fôsse hora
de encontrar
de ficar do lado da bonança
de armar horas para a
futura lembrança

E sem marcar o tempo
de partida
Sem marcar ponto
de encontro
encontrar
como se fôra despedida
de um quase passado
mas em um presente vivido
e consciente

Juntos na mesma aurora
Espuma dentro do mar
Flor crescida na rocha
Ao azar
Pura porque tem de ser pura
Em frente a qualquer dia
Chegar sem memória
E esquecido o lugar
fazer de dois a subida
momentânea
infinita
Cegos
transfigurar
a vida

Dora Vasconcelos
Livro: O Grande Caminho do Branco

Bicho Mau

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado.
Guimarães Rosa.

O velho Guima dispensa apresentações e comentários. Estudos sobre suas obras, são inúmeros. Desse modo, limitar-me-ei a presenteá-los com um conto completo e magistral desse grandioso escritor.

BICHO MAU


   Era só um ser linear, elementarmente reduzido, colado mole ao chão, tortuoso e intenso; enorme, com metro e sessenta do extremo das narinas à última das peças farfalhantes do chocalho. Era uma boicininga – a serpente.
   Fazia sol e ela, começada a aquecer-se, desenrodilhando-se, deixava o buraco abandonado de tatu onde passara inerte os meses frios e largara aos pedaços a velha casca, já fouveira, com impreciso o padrão e desbotadas as cores. De pele mudada, agora, não reluzia, entretanto, senão se resguardava em fosca aspereza, quase crespa, pardo-prêto-verde com losangos amarelados nos flancos, enrossando muito logo após o pescoço; e tanto, que assustava; espesso desmedido o meio do corpo – um duro brusco troço de matéria. Mas que vivia, afundadamente, separadamente, necessitada apenas q querer viver, à custa do que fosse, de qualquer outra vida fora da sua.
   Deslizou, ainda hesitante, surgia aos poucos, como se de si se desembainhasse. Provava a própria elasticidade, fluindo e refluindo, em contrações uniformes, titilando cada ponto de sua massa com a fina forquilha preta da língua; achava-se. Serpeara poucos palmos, contudo, e, encolhendo-se, num incompleto volteio, se deteve. Decerto se antecipara, vindo de longo jejum e obedecendo à primavera, a uma bronca obrigação de amor. Perto, de todos os lados, com efeito, pairavam cheiros bons de alimento, onde antes haviam estalado na relva correrias de preás e de ratos silvestres; de dia, porém, ela
não conseguia ver o suficiente; só a noite, quando, no escuro, seus olhinhos de pupila a-pique acertassem de enxergar, é que iria tentar a caça.
   Satisfazia estímulo mais premente, todavia, movendo-se àquela hora, recobrava-se em tôdas as suas partes, se descongelava. Reptou por entre os assa-peixes, fugiu dos tufos do capim-melôso, que a nauseavam, chegou a mais metros; fatigara-se. Mas precisava era de um pasto sujo, ou do cerrado, beira de roça ou boca de capoeira – no mato não entrava nunca -; melhor ainda um campo ralo e ensolado, pedregoso. De novo se mexeu, ora coleando com amplas sinuosidades oscilantes, ora escorregando reta sobre o ventre, quando o terreno o facilitava. Contornou as moitas de sangue-de-cristo e mijo-de-grilo, e parou na palhada, a igual distância de um montículo de cupins e de uma trilha de gado. Reconhecia, porém, o lugar, de antiga ocasião, em que mal escapara de morrer, numa queimada; recordava a súbita balbúrdia estralejante, com gafanhotos pulando, grasnidos e vultos de gaviões-caçadores voando baixo, pios de aves reclamando socorro, e o calorão crescente, os ardidos e abafantes rebojos da fumaça, que tornavam em castigo e perigo as mais amenas essências, mesmo o frescor de exalação das almêcegas resinosas ou o aroma caricioso do tingui torrado.
   Sabia também obscuramente, que, para diante, iria descer num noruegal, tão sombrio no esconso, que ali teria prestes de aletargar-se em irresistível modorra, conforme anteriores experiências pouco agradáveis. Torceu rumo, desenvolvendo-se num rojar apenas um tanto menos tardo. Levava horas, sabia avançar sempre se escondendo, tudo nela era pavorosa cautela, jamais se apressava. Buscava espaço mais alto. Seguidamente assim rastejou, até que veio dar em sítio propício.
   Soerguida então um mínimo a frente, sem supérfluos movimentos, a cobra sentia o derredor; debaixo do ipê-branco, junto de uma touça de mastruço, com a proximidade de pedras, esconderijos ao alcance, rastros frescos de roedores, som agudo nenhum – justo quase o que ela desejara, nas intermináveis vigílias de sua hibernação. Só a sombra da árvore mudava sucessivamente de área, revelando a presença de objetos estranhos; uma lata com água e um coitèzinho flutuando, e, ao pé, com a folha-de-flandres faiscante, um canecão.
   Sempre a tactear, vibrando a língua bífida, Boicininga se recolheu, como um frêmito de retornos flácidos, em recorrência retorcida, no escorrer de corpo sobre corpo, enrolava-se em roscas, já era um novelo: a cabeça furtada, reentrada até o centro dos grossos nós escuros, apoiada numa falda do tronco; trazida a ponta do rabo com os cascavéis a cruzarem sôbre a nuca. Em alguma parte, naquilo, notava-se um ritmado palpitar, o tênue elevar-se e abater-se da respiração de criatura adormecida – o aspecto mais inocente e apiedador que pode oferecer um ser vivo. Tinha-se de atribuir candura ou infância àquele amontoado repelente.
   Porém, do ipê-branco, pendia, como comprida sacola de aniagem, um ninho de guaxes; e, em volta, o casal de pássaros operava com capricho, rematando-lhe a construção. Enquanto a fêmeazinha, pousada no rebordo, se sumia lá por dentro deixada de fora só a tesoura de penas amarelas, o macho saltitava pelos ramos, aos risos, voltando-se para os lados e espiando as coisas do mundo por cima dos ombros.
   E tanto pulou, que fez cair um estilhaço de galho. Um graveto, cavaco ínfimo, e até florido, mas que rodopiou no ar e veio bater rente a Boicininga. Súbita; como se distendeu e levantou-se, já em guarda, na postura defensiva de emergência, armado o arremesso. Suspenso o terço dianteiro, numa flexuosa arqueadura, e contudo hirta, em riste a cabeça, um az-de-espadas. Sua fúria e ira derramaram-se tão prontas, que as escamas do  corpo, que nem arroz em casca, ramalharam e craquejaram, num estremeção escorrido até aos ocos apêndices córneos da cauda, erguida a prumo, que tocaram sinistramente. Foi um tatalar – o badalar de um copo de dados – um crepitar, longo tempo – depois esmaecendo, surdo, qual o sacolejar de feijões numa vagem sêca.
   Silenciou. Rebulindo, a serpe se recompunha, para quedar aparentemente prostrada, calculada imóvel. Desentorpecera-se de todo, porém, e jazia em secreta excitação. Provocada, Boicininga se fizera a tensão de um ódio único, expectante, que deveria durar muito. Poderia esperar, semanas, tocaiando no mesmo lugar. Tudo existia agora demais, em tôrno dela, tudo a ameaçava. Ai de quem por ali viesse a passar, quem perto dela se aventurasse. Porque nela a vontade de ódio se prendera, ininterrupta; sob uma falsa paciência, maldita, uma espécie desesperada de pudor.
   E, a partir desse momento, vista de frente, ela seria ainda mais hórrida. No rosto de megera – escabroso de granulações saliente, com dois orifícios laterais, com as escamas carenadas e a pala de boné cobrindo a testa, como um beiral – os olhos, que a princípio lembravam os de uma boneca: soltos, sem vida, sujos, empoeirados, secos; mas que, como o escuro risco vertical e a ausência de pálpebras, logo amedrontavam, pela fria fixidez hipnótica de olhos de um faquir. Tanto, que está quieta. Mas, se olhada muito, parece retroceder, vai recuando, fugindo, em duração e extensão, se a gente não resistir adiante-se para o trágico fácies. Onde, por enquanto, a boca era punctiforme, ridiculamente pequena, só um furo, mínimo, para dar saída à língua, onde parecia ter-se refugiado toda pulsação vital; em seguida tomava o jeito da miniatura de uma boca de peixe; e, no entanto, no relâmpago de picar, essa boca iria escancarar-se, num esgar, desmandibulada imensa, plana de ponta a ponta.
   Tudo a desmarcava. Mesmo a cor – um verde murcho, verde lívido, sobre negro, hachurado, musgoso, remoto, primevo, prisco, esse verdor desmaiado, antigo, que se jutnava ao cheiro, bafiento de rato, de ópio bruto, para mais angustiantemente darem idéia de velhice sem tempo, fora da sucessão das eras.
Porque tudo fazia que ela semelhasse, primeiro, um ser vivo muito vivo, muito perdido e humano; muito estranho; um louco, em concentração involuntária, uma estrige, uma velhinha velhíssima. Depois, um morto vivo, ou muito morto, um feto macerado, uma múmia, uma caveira – que emitisse frialdade. Era um problema terrífico. Era a morte. Boicininga estava eterna. Talvez, necessária.
   Uns homens, que trabalhavam mais abaixo, não tinham escutado o crotalar da tétrica fanfarra, não podiam saber da presença de Boicininga, latente na erva, junto da lata d’água. Eram, por enquanto, cinco. Eles roçavam na aba da encosta, preparando chão para o plantio.
   Iam com muita regra, tão a rijo como podia ser. As folhas das enxadas subiam e desciam, a cortar o matinho, agüentando o rojão em boa cadência. O calor ainda era forte, o dia violento. Descalços, alguns deles nus das cinturas para cima, curvados, despejavam suor, com saúde de fôlegos. Não falavam entre si, capinador quase não conversa. Só, de raro, ouvia-se alguma voz de trabalho, em meio ao batidão ritmante:
   -- Ehém?
   -- Hem!
   Puxariam até à tarde.
   Entretempo, chegara também o seo Quinquim, filho do dono da fazenda. Viera para ver, não precisava de pegar no pesado. Mas o seo Quinquim se sentia cheio de ardor, e queria acoroçoar os outros. Pelo que era ali o chefe de lavoura, era quem iria botar roça, por própria conta. Seo Quinquim tomou lugar entre Manuel da Serra e Jimino, e foi rompendo, com muita vontade. Redobrou-se o vigor da labutação, as enxadas timbravam. Só era um dia muito claro, ainda não muito triste. E sendo pois assim, seis homens, e uma cobra; e o daqueles que tivesse sede primeiro, provavelmente teria de morrer.
   E eles estavam no ignorar. Sujeitos a seus corpos, seus músculos, pouco e mal ali tentavam pensamentos. Davam o de seu, viviam o esforço do instante, com nenhumas margens. Nem sabiam de nada, a vida tomava conta deles. Ganhavam seu pão. Aqueles caras suavam.
   De repente, o Egídio parou e levou mão à testa, se enxugando. Olhou para lá. O sol tirava um reflexo na lata, que reluzia. Àquela lata carecia de ser mudada de lugar, a água se esquentava. Mas Egídio havia encostado ainda havia pouco a ferramenta para enrolar um cigarro, seo Quinquim podia pensar que fosse mandrigaem. O Egídio não cogitava em que, se agorinha morresse, ganharia o prêmio de uma libertação; tão pouco cuidasse que a sua morte poderia deixar no duro desamparo os que dependiam de seu amor e de seu dever. O Egídio achava um sossêgo para a idéia, quando brandia a enxada.
   Preto Gregoriano, era quem se achava mais perto da lata d’água, e talvez, portanto, em perigo mais fácil. E ele era o mais velho de todos, de cabelos embranquecidos, tinha vivido muito, demais, já pisava na tristeza da idade. Se bem dividisse com Manuel da Serra a fama de melhor trabalhador, seu lidar não produzia mais tanto, ele se fatigava sempre, volta e meia tinha de estacar, num esbafo, doía-lhe o peito, doíam as cadeiras, ficava com os bofes secos. Precisava de um repouso, de um longo repouso, de arriar o fardo. Só que o trabalho distraía-o também das melancólicas lembranças, fuligem de recordações. Às vezes, gostaria de dar uma conversa, da qual esperasse não sabia que desconhecido consolo, que conselhos de animação. Tinha medo de pensar no adiante, medo do que ia querendo imaginar. O prêto Gregoriano rezava, apenas, e se pacientava.
   Manuel da Serra, preto também, graúdo, espadaúdo, era ali o mais competente braço, cabo mestre no trabalho, o homem de muita razão. – “Eu, cá,  pra comer e no trabucar, não sou mesquinho...” – ele mesmo de si dizia. Viúvo, pai e avô, assim contudo ainda vivia muito por si, capaz de astutas alegrias. Esperava a hora da janta: - “Hora de Deus, a hora abençoada!...” E esperava uma festa, que ia haver, no sábado, no Joaquim Sabino, aonde ia ir uma mulher chamada a Macambira. Tudo o entusiasmava, ele se gabava de guiar valentemente o pessoal, e se influíra ainda mais com a chegada do seo Quinquim. Manuel da Serra, sem que bem o soubesse, se achava apropriado e pronto para qualquer comprida viagem.
   João Ruivo, cachaceiro, treteiro, ruim, lerdeia o quanto pode, a toda hora está encabando a enxada, se negando seja que fugindo, quabrando a canga. Vadia sem preceito nem respeito, prezava-se de muito esperto. Vem-lhe forte a coisa. João Ruivo deixa em pé a enxada, e vai. À passo firme. À meio do que caminhada, porém, pára. Retrocede. –“Só ‘cascar um ananás’, ali? – roga permissão. Por ora, dessa não-feita, está salvo. Toma em direção às toueiras das bromélias, que crescem e amadurecem na meia-encosta. Manuel da Serra ainda comenta, despectivo: --“Isto não é de meus consumos...” E o Jimino assiste muito àquilo, talvez com inveja. Porque o Jimino, quase um menino, estranhado, abobado e humilde, jamais acharia em si coragem para proceder assim.
   O Jimino não aprendeu ainda a agüentar uma idéia firme mais ou menos na cabeça, sua sina não está ainda em nenhum poder dele. É um ser enfezado, mal desenvolvido, num corpo sem esperanças; fosse ele o que morresse, que era que assim o mundo perdia? E já descambava o sol. Com pouco mais, vão largar o trabalho. Se até lá, no findar do prazo, nenhum outro se oferecer ao bote da cascavel, o infeliz será mesmo o Jimino, a quem compete carregar, de volta, lata, caneco e cuia.
   Seo Quinquim olhou, também. Teria por gosto aproveitar uma curta folga. Colher um ananás? Não, dava muito trabalho. E estão azedos, decerto, apertam na língua, piores do que os gravatás. Seo Quinquim se mostra alegre, às vezes banzativo, ora a dar um ar de riso, ele está nos dias de ser pai. Não tardava mais uma semana, a parteira já viera para a fazenda... Ah, fazia votos por que fosse um menino. Um menino, para crescer forte, trabalhador, para continuar o continuado...Àquele lugar, ali, iria dar uma boa roça, um feijoal e tanto, o chão era fresco, quase noruego, terra descansada...Sim, muito alegre, por porfia, por cima da caixinha fechada da tristeza. Nisso que não quero pensar, em que já se acostumara a não pensar.
    Na mulher, que não gostava dele; na verdade, não gostava? Parecia que não tinha gostado, nunca, só mesmo por conta da aferrada teima dele é que ela um dia, por fim, concordara de casar; mas não mudara em nada, com o vir do tempo, não se acostumara em nenhum carinho, não aprendera os possíveis de amor. Natureza das pessoas é caminho ocultado, no estudo de se desentender. A mulher, Virgínia...essas coisas desencontradas da vida. Mas, com a vinda do filho, agora, aparecia também nova esperança, quem sabe...Ah, com o filho, a vida para o seo Quinquim subia por outra vertente, finda uma etapa. O feijão, aqui, vai dar, soberbo, o chão é o que vale, o refrigério do lugar...O feijão carece de três chuvas; uma semeado, outra    , a terceira na flor... Isto a gente podia fiar do tempo, do bom ano... E – quem sabe da vida, é a vida... O dia é que vai acabar, o sol já caído. Havia sêde.
   Em súbito, seo Quinquim cessa o serviço, anda. João Ruivo pega do exemplo, também vem. Preto Gregoriano acompanha-os ele sorriu-se menos tristonho, se persignou. E Manuel da Serra, a seguir, com suas tão extensas passadas, não há ladeira que o acanhe. E o Egídio, fazendo o cortejo. Por final, o Jimino, que fechava a rabeira. Caminham para a água. São já poucos metros só, entre o cá e o lá.
   João Ruivo, que vinha em segundo, retarda-se, parece que deixou cair alguma coisa. Preto Gregoriano se detém também, espera. Mas Manuel da Serra passa adiante, com a continuação do andar. Emparelha-se quase com o seo Quinquim, vão a modo que proseando. À bem pouquinhos palmos da lata de querosene, da serpente de guizos, no ter de passar por. Em fato, da morte. Manuel da Serra ri grosso, gostado. O Egídio tossiu, mais atrás. Seo Quinquim fez alto, e se abaixa para ajeitar uma perna da calça, que tinha descido. Saiu um pouco do trilho. Mas Manuel da Serra por sua vez estaca, respeitoso, sem querer tomar-lhe a dianteira, pelo espaço mínimo, que medeava. Seo Quinquim acertou a barra da calça, arregaçou-a até quase o joelho. Também descalço. O lugar é limpo, nem é preciso a gente olhar para o chão; algo está-lhe diante do pé...
   Só foi um grito, todo sustoso, desde entranhas: -“Minha Nossa Senhora”...” A cobra picara. À coisa golpeara, se desfechara – feito um disparo de labareda. Picara duas vêzes.  E o chocalho matraqueou de novo, soturno, seco. Tudo durara um passo do homem. Tão ligeiro, que seo Quinquim sentira os dois ímpetos num açoitada só.
   -- Valei-me...
   Derreou o busto e desceu mão, à tonta e à pronta, por um pau, uma arma, um trem qualquer. E viu, aquilo: a rodilha monstruosa, que se enroscava e vibrava, enormonho bolo, num roçagar rude, um rio ferver. O asco, pavor e gastura, imobilizaram-no, num ricto de estupor. Seo Quinquim, altos os cabelos, arregalava os olhos para a visão constringente, odiosa, e ele malrosnava sons na garganta.
   Uns dos companheiros gritaram, se atarantavam: --“São Bento! São Bento!...” Mas João ruivo acudira, butesco, resolvido, brandia o facão, dava cabo da cobra. Manuel da Serra amparara seo Quinquim, cambaleante, só a se lastimar: --“Estou morto, minha gente...estou morto...”
   Caíra sobre os joelho, caia sentado no capim, caiu e estendeu-se ao comprido. Pintara-se muito branco, mastigava sem nada e engolia em seco. Depois, ficou de boca aberta, soprando cansaço.
   João Ruivo, afadigado, retalhara o corpo da cascavel, que ainda se retorcia, longo ao léu, flagelando a esmo. Trouxe qualçquer coisa sangrenta, que disse ser o fígado, e que foi esfregando no ponto da picada. Manuel da Serra garroteava a perna de seo Quinquim, como uma correia. João Ruivo agora mascava fumo, para pôr na mordida. Seo Quinquim gemeu:
   --“Não adianta...Já estou padecendo uma tontura...São Bento e minha Nossa Senhora!...”
   Soluçava manso, lágrimas vieram-lhe aos olhos, as mãos trêmulas apalpavam as medalhas de santos do pescoço, seu rosto parecia o de um  menino aflito. Transpirava copiosamente. Gemeu e levaram-no, carregado.
   O sol entrou. E a lata d’água ficou para ali, esquecida, inútil, como tudo o mais estava agora realizado e inútil, inclusive o corpo atassalhado e malaxado de Boicininga.
   Não levaram o doente para a casa-grande da fazenda, mas sim trataram de o conduzir até a uma moradia de camaradas, que ficava cá embaixo, de um dos lados do eirado, entre o paiol e o engenho. E para tanto teriam suas certas razões. Adiantando-se dos demais, foi João Ruivo quem veio e subiu, para informar:
   -- A gente trouxemos o seo Quinquim...Um bicho mau ofendeu a ele...
   Nhô de Barros, o pai, não baqueou. Sómente desceu muito os braços, como que esticados, sob simples estremecer, e, levantados os ombros, se endireitava, entretanto enquanto. Deu uma ordem:
   -- Seo Dinho, corre ligeiro, no Jerônimo, e fala que um bicho mau ofendeu o seu irmão. Chega dizer isso, que ele lá sabe..
   Mas as mulhees, e os meninos, acorreram; pareciam ter adivinhado, no lúcido, tonteante atinar, com que as desditas vêm de dentro. Olhavam-se, feito se pedissem uns aos outros um tico de salvação, e contudo de brusco alheados de entre si, isolados mais, seqüestrados pelo sobressalto. Todos, sem ajuntar idéias, tinham, primeiro, contundente, a crença no pior.
   -- “Essas coisas, esta vida...” – começou Nhô Barros, lamuriado; mas logo reforçou a voz, em tom geral: -- “Há de ser nada, o Quincas vai ficar bom!..” Já indo para sair, fez gesto de não querer que ninguém o seguisse. Nem Dona Calú, que ainda silenciava, nessa hesitação em principiar a sofrer, dos velhos, que antes param em si e demoram um instante, como se buscassem previamente em seu íntimo algum apoio, quaisquer antigos e provados recursos de consolo. Seu olhar e o de Nhô de Barros, juntos, foram para
Virgínia, a esposa, que lívida, pasma, não dava acordo de coisa nenhuma. Olhavam para o seu rosto, e para o seu ventre crescido.
   -- “Ele está vivo, Deus é grande!” – e Dona Calú deixou correr as primeiras lágrimas; mas o seu era um choro sóbrio, manso, sem esgar nem rumor.
   Então, Virgínia, como se recuperasse um perdido fôlego, gritou, se desabafou: --“Coitado do meu filhinho, que vai nascer sem pai...” E era estranho ver como, de súbito, sem que tivesse feito qualquer brusquidão de movimento, ela se desgrenhara.
   --“Não agoura, menina... Não agoura!” – ralhou, baixo, Dona Calú, se benzendo.
   -- “Meu marido...” – gemeu apenas Virgínia, toda sacudida de soluções, ela parecia uma pessoa ansiando por sair deste mundo.
   Mas Dona Calú, que se aproximara, nela quase encostada, sussurrou, inesperadamente  ríspida, como se com ódio e náusea: -- “Agora é que você fala assim, deste jeito?! Agora?!...”
    Virgínia parecia não entender.  As duas estavam de fato a sós, na sala-de-fora, todos os outros tinham ido para a varanda, para ver Nhô de Barros, que a passos compridos lá transpunha o eirado. Dona Calú subjugava-a. Mas, pronto, ergueu de novo a cabeça, numa audácia de angústia:
   -- “É meu marido, eu quero ir para perto dele!”
   -- “Ir, você não vai, de jeito nenhum. Você sabe que mulher prenhe não pode entrar em casa em que esteja pessoa ofendida de bicho mau? Por amor dele, mesmo, então, você devia deixar dessa doidera!...”
   E Dona Calú quis segurá-la, nem de leve, porém, chegou a tocar-lhe. Virgínia, mesma, se abraçara com a outra, começando outro pranto. Juntas, choravam mais amplo, e de outra maneira.
   Tudo o que houve, não foi longo. Interromperam-nas os outros, assustados de fora daquela estreita lamentação. E chegara o Odorico, vindo de lá, da morada dos camaradas, ele se esforçava por mostrar um sorriso, saído de pesada seriedade.
   -- O Quincas está sossegado, Mãe...
   Ai, resposta sobre resposta, falaram as duas, de novo apartadas, falavam um rude desentendimento, uma aversão crescente, era como se, materialmente, mesmo, as duas vozes se defrontassem, se empurrassem, no ar, igualmente implacáveis, se bem que uma soasse quase indecisa, branda, e a outra vibrasse num ímpeto de frenesi:
   -- Ele melhorou? Disse que quer me ver?... E o médico? Já foram chamar o doutor?... – e Virgínia avançara para o cunhado, segurava-lhe os braços, agarrava-o, seus olhos eram para doer nele.
   -- Já foi recado p’ra o Jerônimo Benzedor, que cura...—Dona Calú quis explicar, sua mansidão era extrema, aguda.
   -- Mas, e o médico, também?... É preciso ir chamar, ligeiro, buscar recurso de farmácia, remédios! Anda, Odorico, o que é que você está esperando?!...
   -- O Jerônimo cura, mas a gente não pode remédio de farmácia, minha filha...—Donba Calú cruzara as mãos, ao peito.
   -- Não! Pelo amor de Deus!... Curandeiro nçao sabe de nada, é homem ignorante. É preciso é de ir já, chamar o doutor...
   -- Pois seja, menina. Você manda e desmanda, o que bem entender...Eu vou até lá, vou falar com o Inácio...
   Dona Calú saiu, sua lentidão era astuta e digna, toda um pouquinho de terríveis forças, uma vontade que se economizava.
   Mas Virgínia recrudesceu de seu desvario, dirigindo-se ao rapaz:
   -- Então, Odorico? De galope, vai! Traz o doutor, de qualquer jeito. Assim você ainda pode salvar meu marido, pode salvar seu irmão.
   -- Está bem. Lá vou... — o outro obedeceu, consternado, tartamudeara. Foi pegar o chapéu, e se foi.
   Solta, só, Virgínia ofegava, parecia vencida por fadiga imensa, não chorava mais. Veio para a varanda, debruçou-se no parapeito. De repente, foi noite, anoitecera assim, era o corpo da noite, apenas, e, lá embaixo, a casa de moradia dos camaradas, onde havia uma luzinha. Era uma mulher com os cabelos arapuados, desfeitos, o corpo disforme, as pernas inchadas, os inflamados olhos vermelhos, descalça, como perdera os chinelos, até as feições do rosto estavam mudadas. Era uma mulher, ao relento, parada, estreitada, ante o corpo da noite, podia voar dali, coração e carne. Seu clarear de dor era uma descoberta, que acaso ela mesma ignorava.
   E, cá embaixo, estirado no catre, prostrado, com suor copioso no peito e tremor por todo o corpo, seo Quinquim gemia, fazendo força para não invocar, nem em pensamento, a lembrança e o nome da mulher.
   Sentado aos pés do catre, Nhô de Barros descobria a perna maltratada, para a examinar. Não inflamara, quase. Só, ao redor do sinal das presas da cobra, formara-se uma zona escura.
   -- Dói, Quincas?
   -- ...Nos braços, na barriga da perna, no corpo quase todo...A nunca está dura, estou ficando todo duro, o corpo todo dormente... este lado de cá está esquecido. E a goela está começando a doer também... Acende a luz, Pai!
   A resposta saíra a custo, com grande esforço de lábios e língua. Seo Quinquim mal podia movimentar a cabeça. E suas pálpebras estavam muito caídas.
   -- A luz está acesa, Quincas. Olha o lampião, aqui...
   -- Ahn.. Então vosmecê chegue mais para perto, Pai... Não estou enxergando. Ai, meu Deus, será que eu já estou ficando cego para morrer?... Virgínia...
   Os outros, que se achavam no quarto, entreolharam-se, sob susto supersticioso. Nhô de Barros teve mão no filho:
   -- Não fala! Não fala o nome, pelo amor de Deus! Nela por ora, é que você nem botar a idéia, um tiquinho, você não deve... Você não sabe que faz mal? – “Isto de não enxergar, depois passa. Você não vai ter nada, não...Pensa na tua vida com saúde... É só um por enquanto... Amanhã, depois-d’amanhã, você está sarado, bom. O Jerônimo, a esta hora, já deve estar te benzendo, de lá... Bebe mais um gole...”
   João Ruivo trazia a cachaça. Submisso, seo Quinquim se alongou de todo no enxergão.
   -- “Mais, mais, meu filho... Espera... Deixa passar essa ânsia de vômitos... Agora, bebe, tudo. É restilo do bom.”
   E amparava-lhe a cabeça, chegando-lhe à boca o copo, que se esvaziava lentamente, como os dentes se chocando contra o vidro. Seo Quinquim gemeu mais, não conseguia cuspir o amargo do final, enfim virou-se um pouco para o canto, e amainou, derreado.
   De repente, escutou-se, ao fundo, um cochicho, balbucio de reza. Dona Calú entrara, sem rumor, no escondido, ali permanecia.
   Nhô de Barros veio para junto dela: -- “Não lançou mais, está vendo? Cachaça é bom, para isso... não atrapalha...” – ele queria mostrar firmeza, mas a máscara da mulher, dura, hirta, o desconcertou. E ele fugiu com os olhos, e mexeu nos bolsos, procuando qualquer coisa.
   -- “Ele perguntou por mim?” – a velha indagou.
   -- “Ã, não... Só perguntou foi pela...”
   -- “Você está doido?!” – e Dona Calú, rude, rápida, cortou-o, com um indicador nos lábios e a outra mão fazendo menção de lhe tapar a boca.
   -- “Não sou criança... Não ia falar... E, você, mesma? O que é que tem de vir ver , aqui? Não deve!”
   -- “Eu não estou grávida, não estou dando de mamar...”
   -- “Mas é mulher. Sempre não é bom, mulher...”
   Voltaram-se. O Ricardinho vinha entrando:
   -- “Seu Jerônimo Cob-- ... Seu Jerônimo me deu um copo d’água para beber, de simpatia.. E falou: -- “Quando você chegar em casa de volta, já vai achar seu irmão mais melhorado...” Mas falou que é para não se dar a ele remédio nenhum, nem deixar outra pessoa benzer! Só assim desse jeito é que ele agarante.”
   Daí, os velhos quase se sorriam. Daí, estavam sérios, mas em seu cochicho corria uma alegriazinha de desafogo:
   -- “Está vendo? Pegou no sono... Já melhorou...”
   -- “ Está bem. Todos pagam pelo que um padece. Inácio, eu agora vou-me embora...”
    Saiu, no sereno, no escuro, na friagem. Subiu à casa, ia se recolher ao quarto, mas não rezaria ajoelhada diante do oratório, qualquer reza podia prejudicar a simpatia. Deus perdoava, os Santos não se zangavam.
   Nhô de Barros dispensou também os camaradas. Ficado só com o filho, abaixou a luz do lampião, e foi para a janela, pitar.
   Mais de um cigarro. Seo Quinquim, agora, apenas cumprida a respiração de longo ritmo, extenuado no sopor do álcool e da peçonha.
   Quando deu fé, a porteira bateu, e um cavaleiro entrou no pátio. Era o Odorico, com os remédios. O médico, ele não encontrara, no arraial, estava fora. Mas o farmacêutico madara o soro, para injeção. Eram quatro ampolas. E o estojo, com a seringa, algodão, iodo, tudo. Tinha falado que nem precisava dele mesmo vir; era aplicarem; só com duas, e o doente já estaria a salvo de perigo.
   -- “Esta direito. Me dá, e vai dormir.”
   -- “Mas, sou eu que tenho de dar a injeção nele, Pai... Sei tudo, explicado direitinho...”
   -- “Pois eu também sei. Se carecer, te chamo. Vai dormir.”
   Do meio do eirado, o rapaz ainda volveu nos passos, para avisar: -- “Disse que a gente tem de lavar bem, depois de cada, senão pega e gruda um vidro no outro, atoa, atoa...”
   Agora seo Quinquim revirava no catre, tremia, recomeçando a gemer, os gemidos iam crescendo, gemia dormindo, ele mais se agitou. O velho chamou-o. Ele acordou; guaguejou próprio:
   -- “Dói...muito...tudo!”
   O que parecia de outra voz, já de outra pessoa. Ele quis mostrar a perna, com a mão, ou está se mexendo a-toa, variando?
   Nhô de Barros espera, espera. Abre mais a janela, para entrar mais ar. A noite está muito quieta, lá fora.
   Nhô de Barros desfaz o embrulho da farmácia. Pega a caixinha, com as ampolas. O remédio, ali, acondicionado, tudo tão correto, limpo, rico, tão de se impor. Remédio, às vezes cura, às vezes não... O Jerônimo declarou, ele sabe! O Quincas está melhor, agora só falta a dor ir a se calmar.
   O alazão soprou e bateu com uma pata na coberta do curral. Ainda não quer dormir, cavalo são quase que nunca dorme...Boa vida, a dele. Boa vida, a de toda criação... Se chamasse o Odórico? O Odorico, a esta hora, já estará deitado? O Quincas parou outra vez de gemer. Mas, é bom esperar ainda um pouco... Parece que ele está melhorando... Há de melhorar!
   Friagem. Fecha a janela.
   Foi gemido? Será que ele inda vai tornar a gemer? Mas, assim, também, paece que ele está quieto demais. Agora, é um raio de bicho, zunindo, lá no alto, perto dos caibros. Besouro? Não, deve de ser um marimbondo-caboclo, ruivo, ou um dos pretos, marimbondo não traz mau agouro...Mas é feio, esse zunido dele... Gemeu! A gente, por bem dizer, não está no poder de fazer nada. E a injeção, o remédio? Estúrdio – que, em certas horas, a gente mal que consegue enrolar a palha de um cigarro; velhice, isto dos dedos que tremem, desencontrados... E o bichinho, esta zoeira... Besouro mangangá? Não... Marimbondo...marimbondo...marimbondo... O marimbondo-tatú se acostuma com as pessoas... E se o Quincas morr--... Não! Ele vai ficar bom!...
 O marimbondo mosquito é rajadinho e pequeno, faz a caixa  ns buracos do chão... Que noite, meu Deus!
   A gente não agüenta, não agüenta, estas coisas, não se agüenta mais... O remédio, a injeção, a gente dá, de uma vez, deve de, a gente esquece o resto restante, que há, vem uma hora em que tudo passa, no mais ou menos, se acaba...
   Aqui é a porta. Três passos. Esta janela, a gente deixa aberta ou fechada. As pernas da gente envelhecem mais primeiro que o corpo... A gente bebe um golinho de cachaça. Agora, só chegando mais perto, se chegando, para se conhecer o estado da cara do doente:
   -- “Quincas...Quincas, escuta. Você quer tomar o remédio de farmácia, a injeção?”
   Não dá resposta. Nem não gaguejou. A fôrça, aferrada, que ele está fazendo, o coitado do corpo dele, para viver de tomar ar... Mas, gemer, pode, às vezes, até, meio que grita, de dores...
   Carece de se andar depressa... Dar a injeção? E o que o Jerônimo falou? “Não dar nada... “ Só assim é que ele agarante. O Jerônimo é negro velho, sabe. Quantas pessoas, mesmo, o Jerônimo já curou? Amanhã, o Quincas está bom. Agora, é paga promessa, o cheiro forçoso da cachaça, o amor-de-cana... Que inferno, a gente não saber, certo, sempre, a coisa que a gente tem mesmo de fazer: e que devia de sr uma só, mandada alto, escrita em tudo, estreita, a ordem...
   Mas, o qu a vida é, é que a gente tem de aguentar, estas horas, em todas essas instâncias... De tudo, a gente tem de fazer consciência, e curtir curto, sem poder tomar conselho, sem ganhar sentido... A mocidade da gente já vai longe, um dia nunca é igual a outro dia... Tudo desarranjado, neste mundo. Calú era quem devia também de estar aqui, se n´~ao fosse caso de  bicho mau, as mulheres é que tem mais jeito para as coisas assim de repente diferentes, mulher é que sabe mais, sabem que sabem.
   O bichinho caiu perto do lampião... Não é marimbondo-tatú. É um cassununga, ele tira estes brilhos rebrilhos, verde, em azulados. Eles têm uma casa, comprida, na parede de fora da tulha, ela parece uma combuca... Não, não; o Jerônimo sabe! É preciso só a gente ter fé, para ajudar...
   São só estes vidrinhos, garrafinhas, do farmacêutico. Oi! Quebrou-se sem custo, na mão da gente, os caquinhos de vidro cortam, está dando sangue... Faz mal não. Ainda tem mais três, iguais. A gente joga na parede. Era só uma aguinha, só, espirrou longe... Agora, não tem mais martírio, e até o doente se aquietou, vai melhorar... Ah...
   Vai melhorar. A gente passa os dedos na testa dele, está fresca, fria, as mãos – ele está em paz – ah, a  um filho a gente quer tanto bem, um filho é um filho; paz no coração.
   E já é madrugada, está sendo. O Quincas não se mexe mais com a dor, não se torce. A gente está cansado, este sono, carcaça do corpo pouco agüenta, Deus nos valha, aah...Oah... O Quincas não está mais naquele afã, aquilo, vagaroso, lá nele, a pena pelo respirar... a gente cabeceia, a gente não pode fechar os olhos, a gente fecha os olhos assim mesmo, a noite é grande demais, não se entende, a gente não deve de pensar em morte... A morte, que quando chega é traiçoeira, mas Deus que nos proteja!...Aah..Amém.
   Um dia, justo, justo, em sol e hora, depois do enterro de seo Quinquim, outro acontecimento calamitara a casa e a gente da fazenda. Virgínia, com o sofrer de muitas dores, tinha tido uma criança morta. Ela mesma permanecia igual a uma morta, em funda sonolência, na cama, no quarto, no escuro. Tão longe afundada, tão longemente, que os outros sentiam sua presença pela casa inteira, de um modo que os inquietava, pareciam mais humildes. Aquilo não era uma doença corporal, que desse apenas os graves cuidados. Era um quieto viajar, fazia outras distâncias, temia-se-lhe a estranhadez da loucura – era alguma coisa que ela aceitava. Trouxeram o médico, um moço de fora.
   Nhô de Barros teve que conversar muito com ele. Ele quisera saber mais sobre seo Quinquim e a cobra, a picada. Dizia que o soro não podia deixar de salvar o rapaz; a não ser se tivesse sifo atingido numa veia; mais, se fosse numa veia, teria sido fulminante. Ora seo Quinquim durara ainda muitas horas... Não teriam, acaso, dado ao doente algum remédio de curandeiro? Garrafadas, calomelano com caldo de limão? Sabia-se que era mantido, ali, na fazenda, como agregado, um desses, charlatão... – “É um velho, um coitado. Dá-se casa p’ra ele morar, e três alqueires, p´ra plantar, à terça... Ou teria sido outra qualidade de cobra? Teriam reconhecido bem a cascavel?”
   -- “Sim senhor, seu doutor. Isto sim, algum engano era capaz que tivesse havido. Mas era cascavel mesmo, mesma, ela tinha mudado de novo, estava bem repintada, tinha chocalho, um corninboque de quatorze campainhazinhas, só...”






Estas Histórias - 1ª Edição
Guimarães Rosa
Encadernação original brochura em muito bom estado de conservação. 231pp.
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Lições de Abismo: Corção e Goeldi

domingo, 20 de novembro de 2011

Gustavo Corção: O Escritor

Lição nº 1

Ser comparado aos grandes escritores de sua época, declarado sucessor de Machado de Assis, manejar a língua com maestria e ser um pensador de primeira grandeza.

Lição nº 2

Ser atacado impiedosamente pela crítica, não por sua obra, mas por suas idéias.

Lição nº 3
Sua obra fala por sí.


O livro de Gustavo Corção, Lições de Abismo (Livraria Agir Editora, 13a edição, 1973), é a obra literária mais famosa deste esquecido pensador e artista católico. As inúmeras edições desde a primeira em 1953 fazem pensar que Corção tinha um público significativo. Ficaram famosas suas polêmicas com Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athaíde, partidário de um catolicismo mais liberal, enquanto o de Corção era duramente tradicionalista. Corção foi chamado até de satã pelo Pasquim, e antipatizado por uma geração que mergulhara, como o padre Nando de Quarup, no catolicismo de esquerda, fazendo a opção preferencial pelos pobres.

Antes de analisar o romance, será preciso contextualizar o catolicismo de Corção. Enquanto intelectuais católicos como Tristão de Athaíde passaram da direita nos anos 30/40 para a esquerda na década de 60, quando do surgimento da Teologia da Libertação, Corção era um ex-ateu, e, quando retornou ao catolicismo, reafirmou furiosamente os dogmas. Diante da polarização da Guerra Fria, acabou resvalando para a postura de apoio ao regime militar brasileiro. Tornou-se, junto com Nelson Rodrigues (embora sem a grosseria ostensiva deste) o reacionário, o direitista que toda a geração marcada por 1968 identificou e atacou. Mas vale a pena reexaminar uma obra literária do intelectual católico Gustavo Corção, que se inscreve numa linhagem de pensadores católicos que se afigura uma de nossas duas únicas tradições de pensamento enraizadas (a outra é a vertente marxista). Distante das metáforas sexuais e das frases de mau-gosto que atrapalham mesmo as melhores obras de Nelson, Corção é um escritor provido de sensibilidade estética: ao falar de morte, passa longe da morbidez e do cinismo.

Em Lições de Abismo, um professor de filosofia chamado José Maria descobre que está acometido de um câncer no sangue. Amante de ópera, culto e ilustrado, José mergulha na obsessão da idéia de morte, pensando constantemente no fim. Em meio a devaneios e especulações metafísicas, José Maria se sente desagregar. Está curiosamente próximo do existencialismo cristão, embora faça a seguinte observação:
Chego a dizer, com Kierkegaard, que quanto mais me demonstrarem a imortalidade da alma menos creio nela. Que quer isto dizer? Terei eu um ceticismo que me leva a descrer das operações da inteligência, e que prefira a penumbra à claridade, como parece que seja o gosto de um Heidegger, e mesmo de Kierkegaard? Não. Não é bem essa a dificuldade. Se realmente me repugna a iluminação crua do cartesianismo, não me atraem as obscuridades dos filósofos germânicos. (CORÇÃO, Gustavo. 1973, p.55)

A personagem operística Kundry simboliza, daí por diante, a morte anunciada. A partir de então José Maria vive experiências existenciais que lembram as de Antoine Roquentin em A Náusea. Faz então a famosa experiência do negativo, que perpassa a filosofia de Sartre e Heidegger e os textos de Camus. Caindo nos abismos da subjetividade, José Maria vivencia momentos de extrema delicadeza e de sensibilidade muito apurada:

A descoberta do eu, li hoje nas páginas de um filósofo,  se completa nos abismos da subjetividade. Esse é o documento cifrado, escrito em caracteres rúnicos, que me caiu nas mãos por acaso, e que indica de modo tão conciso o caminho do centro da Terra. Eia, Axel, chegou a hora. Despede-te da bela Gräuben. Vamos descer aos abismos. (CORÇAO, 1973, p. 234)

O romance faz um movimento de mergulho e volta à tona, em busca da sala do trono no castelo encantado de si mesmo. José Maria contesta Freud, quer achar o eu cartesiano, onde o eu estava como um rei em seu castelo, mas só encontra silêncio, escuridão, sente-se estrangeiro de si mesmo, vê o próprio dedo como um pau de cerca derrubado, que o triste dono deste solar arruinado calcula como e quando consertará (CORÇAO, 1973, P. 237). Nada o consola, revolvendo a memória, sente-se um prisioneiro melancólico que folheia um álbum; não se encontra na própria imaginação, essa câmara de projeções combinadas, que superpõe espetáculos, aproximando vulcões, estrelas e rosas. (CORÇÃO, 1973, p.238)
Cai, despenca no vazio, acorda gritando, agarrando-se ao título de professor. Imagina o dia em que partirá para o outro mundo, vendo o mundo afastar-se devagar, como um cais com muita gente agradecida, com muitos lenços. (CORÇÃO, 1973, p.239)
Em outros momentos, no entanto, José Maria demonstra um elitismo aristocrático, criticando posturas nacionalistas e socialistas por seu coletivismo, que ele julga abjeto, tendo assimilado ao seu cristianismo a crítica de Nietzsche à moral dos escravos.
José Maria possui uma visão olímpica do mundo:
No trecho supracitado, o personagem é um esteta do absurdo que encontra um nacionalista romântico e boêmio. Surge hostilidade entre os dois, pois José Maria está vivenciando profundamente o negativo. O que o eleva dos abismos da subjetividade é sempre a experiência do belo. Ostensivamente influenciado por Machado de Assis, Corção cita o conto A Missa do Galo e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Consta que publicou, inclusive, um ensaio sobre Machado. (NetSaber Resumos)




No link abaixo, a bibliografia comentada deste autor para os que não o conheciam ou não se lembravam dele e ficaram curiosos.
http://www.permanencia.org.br/drupal/node/42

Osvaldo Goeldi: O Mestre.

  Fez seus estudos primários na Suíça. Primeiros estudos de desenho em 1915, tendo realizado exposição em Berna em 1917.
     Em 1921, de volta ao Brasil, realizou exposição individual. A partir de 1924 dedicou-se à xilogravura.
     Retornou à Europa em 1930, expondo em Berna e Berlim. Participou da Bienal de São Paulo a partir de 1951, e a partir de 1950, da Bienal de Veneza. Realizou inúmeras exposições no Brasil e no exterior.
     Frederico Morais escreveu a seu respeito: "Há um sentido moral na obra de Goeldi. O corte incisivo, seco, sem virtuosismo, da sua gravura, esta capacidade de fazer dos sulcos na madeira ao mesmo tempo corte e luz, esta economia e objetividade nos traços, enfim, o sentido formal de sua gravura, só existe em função deste caráter moral, desta sua visão do mundo."
     Em 1995 o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, inaugurou retrospectiva de sua obra. Entre 1998 e 1999, também no Rio, a Casa França-Brasil realizou uma mostra de suas gravuras.

Corção e Goeldi juntos, nesta grande obra









 

Mais Dora na "aba" Poesia. Confiram!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011




CATEDRAL

Construí pedra sôbre pedra
Pedra sôbre pedra
Pedra sôbre pedra

E hoje sou uma imensa
Catedral vazia
Onde reboa teu nome
Teu nome
Teu repetido nome
Vibrando
Os altos sons do órgão

E o anjo
Contempla-me impassível
O índex em cruz
Sôbre os lábios complacentes.